quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

Conto: Clamor dos Inocentes (2/3)

        
“Comum”. Lembro que essa foi a primeira palavra que veio a minha cabeça quando vi Billy pela primeira vez. O portão de minha garagem se abria lentamente, e começava a revelar os primeiros traços daquele que poderia ser o meu salvador. Tênis baratos e desgastados, calça rasgada em ao menos dois locais diferentes, e jaqueta escura de couro, fechada. As mãos no bolso da jaqueta e a expressão completamente indiferente estampada na face, espalhando a fumaça do cigarro de sua boca.
- Vo-você é o Billy? – perguntei, a princípio um pouco nervoso. É claro que o cara poderia não ser do tamanho de Hulk Hogan, mesmo assim, eu continuava sendo um magrelo fracote e medroso. Além disso, Bruce Lee também não era grande, e todos sabemos das coisas que ele foi capaz de fazer.
Ele não respondeu. Continuou me encarando com um olhar amargo por mais algum tempo, sem desviar o olhar. Sua pele era branca, pálida, e os cabelos curtos, estilo militar. Somente mais tarde, naquele dia, que eu percebi o quanto ele se parecia com um psicopata, me olhando daquela forma.
- É, acho que se não fosse ele, não estaria aqui. Não é? – dizia eu, dando uma risada forçada, nervoso.
Billy continuou me olhando da mesma forma, ainda sem dizer nada, o que me deixou mais nervoso. Cheguei a pensar que diria alguma coisa quando mexeu seu braço direito, mas apenas puxou o cigarro dos lábios secos e tragou profundamente.
Outra coisa sobre Billy Jordan era que ele estava sempre fumando quando estava fora da escola. Os boatos já diziam isso, então não era exatamente novidade para mim, nem mesmo algo tão ruim quanto os comerciais de TV faziam parecer. As pessoas gostavam, achavam legal. Seria algo que até mesmo eu poderia gostar, aos meus 16 anos, se aquilo não fosse tão desnecessário e indiferente para mim, naquela época.
Depois de algum tempo Billy desviou o olhar de mim, e começou a olhar as coisas de minha garagem, ao meu redor. Entrou em passos lentos, observador.
- Ãn... pode entrar, fique à vontade – eu disse a ele, conforme ele já entrava em minha casa.
Passou os olhos pelas prateleiras repletas de velharias, materiais de construção e de pintura. Naquela época meu pai havia recebido uma promoção no trabalho e, na empolgação do momento, comprou vários daqueles materiais, prometendo fazer de nossa velha casa uma mansão. O tempo passou e, que eu me lembre, ele mexeu somente uma ou duas vezes nos materiais de construção para consertar um vazamento ou fincar um prego na parede para colocar um quadro.
- Humph. Que lixaria... – resmungou Billy pela primeira vez, entediado. Tinha parte da voz obstruída pelo cigarro em sua boca, e olhava com nojo para a garagem, se apoiando contra uma das portas do recém-comprado Mazda 626 1996 do meu pai.
Tragou profundamente com seu cigarro e voltou a me encarar com o mesmo olhar de antes. Talvez até um pouco mais zangado. Dei um sorriso torto, e pensei na possibilidade de lhe oferecer um café, mas percebi que não seria uma boa ideia antes de fazê-lo.
Decidi ir direto ao assunto.
- Certo... eu te chamei aqui porque... – comecei a dizer até ele me interromper, com a voz firme.
- Quer que eu bata em quem?
- O-o que? – perguntei, nervoso.
Naquele momento eu imaginava como Billy poderia saber que eu havia o chamado ali com aquele intuito. Eu havia encontrado seu número com um amigo da minha irmã, que estudou com ele. Na conversa por telefone ele parecia igualmente calado, ainda que na ocasião eu houvesse pensado que ele estava apenas ocupado com alguma outra coisa. Apenas disse a ele que tinha uma proposta para lhe fazer e lhe dei uma estimativa de quanto poderia pagar. Ele não perguntou nada, apenas disse que viria.
- As pessoas me ligam querendo que eu bata em alguém, então elas dizem um nome, me pagam, e eu faço o serviço. Então? O que tenho que fazer? – dizia ele, em tom mais ríspido do que suas palavras faziam parecer.
Na época eu achei curioso que Billy houvesse encontrado minha casa tão rápido. Ela não tinha numeração na frente e havia outras duas ruas com o mesmo nome. A grande maioria das pessoas não encontrava minha casa na primeira vez, mas Billy encontrou. Somente anos mais tarde eu descobri que minha irmã mais velha havia sido uma das garotas do colégio com quem ele trepou, no secundário. Antes disso, eu não fazia ideia.
Quero dizer, é claro que eu sabia que minha irmã, cedo ou tarde, treparia com alguém – assim como eu mesmo também pretendia –, o problema é que nós nunca esperamos que esse alguém seja um babaca como Billy Jordan ou Patrick Hannigan.
Na verdade, acho que não esperamos nem que elas façam isso com caras como Will, Bob Miller ou eu.
– Ãn... Certo – eu dizia, tentando retomar minha postura. – Tem um cara que anda incomodando a mim e um amigo há algum...
– Que merda você não entendeu? – me interrompeu ele, impaciente, arrancando da boca o filtro que havia sobrado do cigarro, e jogando para fora da garagem. – Eu só quero a porra do nome e o dinheiro!
Eu hesitei por um momento, observando a atitude agressiva e a expressão sanguinária de Billy, mas, de alguma forma, me enchi de coragem e disse com a convicção de quem grita um hino de guerra o nome que já estava entalado na minha garganta há quase um ano.
– Patrick Hannigan. 100 dólares agora, e mais 100 depois, caso ele vá parar no hospital – dizia eu, puxando com violência o dinheiro de meu bolso.
Will e eu lutamos para conseguir juntar aquela quantidade durante um mês, pois sabíamos – através dos boatos – que Billy não faria aquilo por menos. Tivemos que cortar grama, limpar as calhas e até lavar os carros dos nossos vizinhos durante um bom tempo, até finalmente conseguirmos.
Eu me sentia inquieto por dentro, assustado; mas por fora eu segura 100 dólares com firmeza na mão, e lançava um olhar afiado a Billy, como se o desafiasse a aceitar aquela missão. Ele finalmente mudou a expressão, e deu um sorrisinho cínico na ponta dos lábios. Andou em minha direção a passos firmes – enquanto eu mantinha minha postura –, pegou o dinheiro de minha mão com rapidez e se encaminhou para fora da minha garagem.
Enquanto ele saía, confesso que a imagem que me vem à cabeça agora, ao relembrar tudo isso, é a fala de minha irmã sobre ele. Não era bom de cama, e nem bonito. Dizia ela, indiferente. A questão com ele era o prazer de saber que você estava fazendo algo que não devia, com alguém que não devia.
De certo modo, tirando a parte sexual da coisa, era daquela forma que eu me sentia ao ver Billy se afastar de minha casa. Mas essa sensação não tinha nada de prazerosa. Eu era um frágil ratinho assustado que tinha relapsos de coragem, e, por vezes, decidia ir atrás de ratos maiores e mais fortes arquitetar um plano contra um cientista malvado que brincava de Deus.
Eu, talvez, fosse o ratinho assustado, mas Billy não era outra rato – mesmo que um grande – e muito menos Patrick Hannigan era um cientista malvado.
- Guarde bem meus outros 100 dólares – dizia ele, olhando por cima dos ombros com o mesmo sorrisinho cínico de antes, e puxando outro cigarro do próprio bolso enquanto o portão da minha garagem se fechava atrás dele.
              Eu guardei bem aqueles 100 dólares, mas Billy Jordan nunca voltou para buscá-los.


                                        FIM DA SEGUNDA PARTE


23 comentários:

  1. Melhor conto escrito pelo escritor mais bonito <3

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  2. Aiii Sem-or!
    Esse final! Já estou querendo a próxima parte!
    Sua escrita tem um quê de mistério e de cotidiano. Consigo imaginar todas as cenas na minha cabeça =D
    Parabéns!
    Bj

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    1. Haha, grato Michelle. Se quiser ler a próxima parte o link é http://jvmedeiros.blogspot.com.br/2017/02/conto-clamor-dos-inocentes-33.html

      Espero que gostei. Beijo!

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  3. Oiee ^^
    OMG como assim ele não voltou? Surtei quando vi Segunda Parte ali...haha' vou agora mesmo procurar a primeira. Aiaiai *-* quero saber o que acontece depois.

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    1. Oi Dryh. Que bom que gostou!
      O conto tem 3 partes, todas já postadas. Se quiser ler a primeira, só acessar o link: https://jvmedeiros.blogspot.com.br/2017/01/conto-clamor-dos-inocentes-12.html

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  4. Oi!
    Parabéns pelo excelente conto. Li a primeira parte pra entender a segunda e agora quero logo ler a parte final pra descobrir o desfecho.
    Beijos!

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    1. Oi Larissa. Que bom que gostou!

      Se quiser ler a última parte, está no link: http://jvmedeiros.blogspot.com.br/2017/02/conto-clamor-dos-inocentes-33.html

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  5. É o típico caso que a gente percebe que a ideia não vai acabar bem e muito menos solucionar o problema. Condução interessante dos personagens. Vou ler a próxima parte.

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    1. Pois é, mas é curioso, porque mesmo sendo boa ou má, esta ideia, é muito difícil ver um livro/conto onde um personagem tem uma atitude assim. Aqui ele teve, e talvez descubra que a ideia foi boa, ou não, mas enfim, ao menos o grito interno do personagem que pedia uma reação dele foi acionado, e ele tentou ativar da melhor forma que pode. Bom, ao menos um pouco inusitada isso foi (e o final será inusitado ainda, creio eu).

      Grato por acompanhar o conto Bete! Grande abraço!

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  6. OOi!
    Fiquei meio confusa com esse aqui, mas ainda assim adoreei sua escrita. Consegui visualizar o que lia! Já vou correndo ali na primeira parte. haha
    Parabéns!

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    1. Ola, que bom que gostou. Se quiser ler as outras partes, ja foram postadas.

      Abraço ;)

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  7. Oi João!
    Parabéns pelo conto! Muito bem escrito, muito interessante esse misterio que você coloca no seu conto <3

    Beijos
    Biblioteca Desajeitada

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    1. Grato! Fico feliz que tenha gostado! Tem outras partes postadas tambem

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  8. Ahhhhh que conto mais incrível gente! Confesso que fiquei bastante envolvida e desejo que tu continue sempre escrevendo mais e mais para trazer essas belezinhas para nós!
    Beijinhos da Morgs!

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    1. Opa, muito grato morg. Se quiser ler as outras partes elas ja estao postadas

      Abraço ;)

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  9. Nossa, você escreve maravilhosamente bem, fiquei curiosa com a continuação da história. O que terá a acontecido a Billy a ponto dele não retornar para buscar o que lhe era de direito através do acordo firmado? Parabéns pela escrita incrível e cheia de mistério.

    Bjs, Glaucia.
    www.maisquelivros.com

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  10. Olá.
    Não li as outras partes, mas achei bem envolvente, parabéns pelo conto, muito bem escrito, fiquei bem curiosa. Embora não seja um gênero que estou acostumada a ler fiquei curiosa e interessada.
    bjs

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  11. Oi, tudo bem?
    Pelo conto, muito bem escrito por sinal.
    Não entendi porque ele não volta, talvez tenha algo que eu só vou entender se ler a primeira parte.

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  12. Olá,
    Adorando este conto, e como a trama tem se desenvolvido.
    Aguardando ansioso pelo restante.

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  13. Olá!
    Adorei poder conferir esse conto aqui no seu blog, parabéns, você escreve muito bem! Vou ficar no aguardo da continuação.
    Beijos.

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