sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

Conto: Novo Começo (1/3)

* Sinopse do livro aqui!

5 anos antes do início do caos.



Diário de bordo. James Williams, 27 anos, 13 de fevereiro.

Bryan está muito mais animado que eu em relação as nossas perspectivas de sucesso deste plano. Particularmente, me dói o pensamento de deixar tudo para trás e começar uma vida nova, mas acho que é algo que – se este lugar valer a pena – precisaremos fazer. Além do mais...

- James! Larga essa porcaria e vem ver isso! – Chamava a voz de Bryan no lado de fora do quarto da tripulação.
James fechou seu caderno e deixou-o sobre sua rede de dormir. Ajeitou sua besta – presa em suas costas através de uma bandoleira – e foi atrás do irmão. O convés estava cheio. Todos os tripulantes olhavam para fora navio.
- Achamos esta maldita ilha, James! – Dizia Bryan com um sorriso confiante assim que o irmão se aproximava do parapeito do convés. – Levamos o que? Alguns dias?
James avistou o motivo de toda aquela alegria. Um semblante de ilha que começava a se formar no horizonte.
- Como podemos saber que esse é o lugar? E se for a ilha Narabis, ou... alguma outra ilha pior.
- Você parece uma criança falando essas besteiras, James. Abner conhece Narabis. Ele já esteve lá. Se ele está dizendo que não é, é porque não é.
- Ele não está dizendo nada – Disse ele, observando Abner no convés superior. Com sua luneta, o líder também tinha seu olhar focado no horizonte.
Abner já havia passado de seu auge da forma física, agora estava com mais de 40 anos. Sua espada, presa a cintura, era de uma lâmina mais longa do que a maioria dos guerreiros da Organização estavam acostumados. Tinha os cabelos cumpridos, que um dia foram castanho-escuro e agora davam lugar aos fios grisalhos, presos sob um rabo de cavalo. Diferente de seu largo sorriso habitual, naquele momento sua expressão era séria, talvez até um pouco preocupado, já a postura era rígida, como a de um general de guerra.
- Nunca diz nada quando está apreensivo... – Continuou James.
- Com tudo que passamos em outras ilhas, todos estão apreensivos. E com razão, mas isso é besteira. Quando eu e meus companheiros viemos aqui, naquela missão de excursão, encontramos tudo completamente deserto. Acredite em mim, estou dizendo que a ilha é segura.
James mirou Bryan. Seu irmão era 5 anos mais novo que ele. Portava uma espada na bainha da cintura, tinha os cabelos curtos e bagunçados e a barba malfeita. Em geral era uma companhia animada, mas James sempre dizia que era o tipo de pessoa que ninguém gostava de manter por perto quando se estava aborrecido.
Bryan fitava a ilha como se mirasse sua primeira paixão, o que fez James franzir o cenho. Seu irmão estava seguro demais de suas palavras, e isso era o que mais o preocupava. E o pior de tudo era que já era tarde demais para qualquer conselho ou sermão. Bryan estava tão empolgado que já não lhe daria mais ouvidos.
- É. Eu espero... – Disse James.
- Ora, tire essa expressão carrancuda da cara, irmão! Desse jeito vai acabar convencendo nossos companheiros que estamos indo para um funeral.
- Não estou querendo convencer ninguém de nada, apenas fico pensando na possibilidade de encontrarmos os tauros ou algum ser pior por aí. Isto é, caso eles sejam realmente tão asquerosos quanto nos dizem, mas como podemos saber?
- Você acabou de responder isso. São asquerosos porque nossos companheiros que os conheceram comprovaram isso. Inclusive o próprio Abner. Porque passam tanto tempo juntos se ele não te conta essas histórias?!
As bochechas de James coraram, e ele desviou o olhar.
- Nu-nunca disse que ele não c-conta, só digo que acho isso estranho. Ora, pense bem Bryan, que motivo os tauros teriam para sair por aí colonizando ilhas e matando os humanos que encontram? Não há sentido algum nisso...
Bryan bufou.
- Há sentido se você pensar que os desejos deles são simples, James. São seres estupidos guiados pela ganancia. Querem demonstrar seu poder dominando outros lugares e povos, tomando seus bens, fazendo-os de escravos e sabe-se-lá se eles não se alimentam de nossos corpos? Já deve ter ouvido as histórias de Abner, são seres animalescos!
- Eu sei, eu sei, mas... será que não há algo mais? Quero dizer, nunca os vimos de verdade, sequer conhecemos a cor de seus olhos, como podemos ter tanta certeza de que essas são mesmo suas motivações?
- E o que mais poderia ser, James? Não há nada no mundo além da ganancia. Além disso, quando alguém te aponta uma espada ao pescoço o que você faz? Pergunta quais são seus objetivos e sonhos ou protege sua vida? A resposta é simples.
- É, talvez seja, mas a verdade é que um tauro nunca me apontou uma espada.
- Mas você nunca viu um tauro, e espero que nunca veja. Aliás, espero que nem um de nós veja. Ao invés devanearmos sobre essas bobagens deveríamos nos preocupar com o que temos que fazer.
James suspirou olhando o horizonte. O semblante da ilha se tornava cada vez maior.
- É, seja como for, com isso eu concordo.
Enquanto a tripulação preparava os botes para zarparem até a ilha, Marlene passava atrás deles como uma mãe zangada, dando uma bronca contida, para não chamar muita atenção, em Miguel e Isaque.
- Quanta irresponsabilidade, Miguel! Trazer um garotinho desta idade para uma missão com potencial para ser tão perigosa?!
- A missão não é perigosa! Você ouviu o que a tripulação da missão de excursão disse. A ilha está deserta!
- Não interessa! Tudo é perigoso para uma criança de 5 anos! – Insistia na bronca a mulher, enquanto adentravam no quarto da tripulação.
Curioso, James continuou observando-os enquanto entravam. Apoiado no parapeito do convés se encontrava em uma posição que favorecia a visão do trio dentro do quarto.
Miguel bufou.
- Enquanto estiver comigo, Isaque vai estar seguro! Além disso, ele quer conhecer outros lugares. Nós queremos!
- Simmm! Por favor, nos deixe ir também! – Interveio Isaque. – Sou muito forte! Posso me cuidar!
- Já chega – Disse a mulher. – Você não vai mais zarpar até a ilha. Vai ficar aqui cuidando de Isaque e guardando o navio.
- Mas Marlene, eu... – Tentou argumentar Miguel, sem sucesso.
- Sem “mas”, Miguel! Se não quer que eu conte isto a Abner é melhor me obedecer.
- Você vai contar de qualquer jeito...
- Mas ainda posso escolher as palavras que vou usar.
Os irmãos incorporaram expressões de arrependimento enquanto Marlene saía do quarto e subia até o convés superior, onde passava a conversar com Abner.
A mulher era sobrinha de Abner, líder da Organização que participavam, enquanto Miguel era um adolescente órfão que o grupo deles – essencialmente Abner – havia adotado quando ainda era criança, assim como Isaque, o irmãozinho caçula do rapaz.
- Não sei como Abner pode ter tanta paciência com esse Miguel... – Dizia Bryan que, sem que James percebesse, também estivera olhando aquela cena toda. – Está sempre achando motivos para fazer alguma merda.
Bryan voltou a fitar a ilha, enquanto James ainda mirava Miguel. O garoto deveria ter cerca de 15 anos de idade e, agora deitado, dividia uma rede com seu irmãozinho. Talvez estivesse arrependido de ter trazia seu irmão para algo tão perigoso como aquilo, ou talvez estivesse apenas aborrecido.
James alternou seu olhar para Abner, enquanto ele terminava de conversar com Marlene. O líder da Organização dirigiu um olhar a James, seguido de um aceno positivo de cabeça.
Naquele momento, aquele tão simples gesto fez James voltar a sentir o peso que carregava nas costas por ser um dos candidatos a substituir Abner na liderança da Organização, quando o momento chegasse. E o fato de ser o favorito por parte do próprio líder não amenizava esse peso.

*

Conforme levavam os botes até a areia da praia, transportando poucas dezenas de homens, James apreciava a paisagem do lugar. Com uma margem estreita entre o mar e a floresta, a areia durava pouco e a floresta parecia densa, dando um indicio de desabitação.
- É lindo, não é? – Disse Bryan, com aquele sorriso largo.
- É – Respondia James, tentando entender onde havia beleza em um gramado alto e milhares de plantas e árvores.
Quando os botes já estavam atracados, Abner ordenou que seguissem juntos mata a dentro. Andavam em fila indiana, de dois em dois. James havia ficado no meio da fila, enquanto Abner, Bryan e alguns outros que haviam participado da última excursão até aquela ilha permaneciam na linha de frente, abrindo caminho e tentando guiá-los.
A maioria se mostrava maravilhada com o lugar conforme o conheciam cada vez mais. Respaldavam toda a “beleza natural” do ambiente, e toda sua pureza, já que não havia sido destruída ou sequer tocada por seres vivos. Mas James achava aquele pensamento irônico, já que todos aqueles homens queriam fazer daquele lugar um lar, e para isso seria necessário subjulgar a ilha. As mãos humanas transformariam tal “pureza” em madeiras e concretos, e então o lugar ainda seria considerado tão belo ou isso não importaria mais?
Após algum tempo de caminhada com uma mistura de apreensão e animação, eles haviam chegado em uma clareira espaçosa onde, no final da mesma, havia uma pequena montanha formando uma cachoeira que dava vida a um pequeno lago. Todos sorriram ao verem que finalmente poderiam sair daquela densa floresta e correrem até a beirada do lago para beber água.
Por alguns minutos mataram a sede, encheram seus cantis e se refrescaram, mas logo Abner já reorganizava todos em suas posições. Tinham que vasculhar o máximo possível daquela ilha antes que anoitecesse e precisem voltar ao navio. Se tudo corresse como planejado, em poucos dias eles poderiam estar voltando para casa com a notícia de que havia um lugar seguro para o qual poderiam migrar.
Enquanto alguns homens terminavam de estacar bandeiras no solo com o símbolo da Organização, demarcando as áreas que já haviam sido exploradas pelo grupo, Abner terminava de organizar todos em fila, de volta mata adentro. Contornariam a cachoeira.
James terminava de encher seu cantil e se encaminhava para o final da fila, junto com os outros, até que Abner, que ainda não havia entrado na mata, fez sinal para que todos seguissem adiante enquanto segurava James pelo braço.
Aos poucos todos foram seguindo caminho em passos lentos, e assim que Abner e James estiveram sozinhos o líder desfez sua postura séria e expressou um olhar caloroso.
- Por que está tão sério hoje, James?
- Acho que pelo mesmo motivo que você.
Abner riu.
- Não me parece que esteja apreensivo com que vamos encontrar aqui. Por tudo que vimos até agora este lugar parece seguro. Você está diferente. Está melancólico...
James soltou um sorriso na ponta dos lábios.
- Você me conhece.
- Convivo com você a tempo o suficiente para isso.
- É, eu acho que sim. Apenas me pergunto se vale mesmo a pena deixar tudo que temos para trás e... começar do zero.
- Exato. Começar do zero – Dizia Abner, dando tapinhas no rosto do outro. Em seguida apontou para a cachoeira. – Caso este lugar ofereça bons recursos poderemos criar nosso povo aqui, longe da ignorância humana de Giordana. Seremos melhores. Viveremos em nossa própria busca pela paz.
James respirou fundo e permaneceu mudo por alguns segundos, mirando tudo ao seu redor. A floresta, a cachoeira, os pássaros cantando... e por um momento tudo aquilo já não lhe parecia mais tão louco.
- É, talvez você tenha razão. Você sempre tem.
Abner expressou um sorriso mais largo e deu novos tapinhas na face de James.
 - Bom saber que, mesmo velho, ainda consigo te fazer mudar de ideia.
James iria interromper o outro para dizer alguma coisa, mas Abner desviou o olhar para longe e deu um suspiro cansado, e então pareceu como se, ao invés de pouco mais de 40 anos, ele tivesse o dobro disso em idade e o triplo em sabedoria.
- Quando eu morrer, sabe que vou querer que você cuide do nosso legado, não é? – Continuou Abner, voltando a contemplar James. Mantinha a expressão cansada e um quê de derrotada na face.
- Não fale como se já fosse um idoso a beira da morte.
- Tenho mais de 40 anos, James. Quantas pessoas com 60 você conhece?
- Gregório Silver está quase lá...
- Gregório é um homem honrado e muito mais forte do que eu jamais serei. Forte o bastante para enganar a morte algumas vezes. Mas diferente dele, eu sinto que minha hora logo vai chegar.
- Não diga...
- Não, James. Ela vai. Cedo ou tarde ela chega para todos. E em meu caso o “tarde” está logo aí.
- Você sabe que temos as poções dos hannomans, não sabe? Temos aliados fortes e nenhuma guerra para lutar há muito tempo. Todos podemos superar as expectativas de vida atual.
- Talvez sim, talvez não, a única coisa que é certa é que morreremos algum dia. E é por isso que preciso que você esteja preparado quando o momento chegar.
- Só me quer o substituindo porque gosta de mim. Todos conseguem ver que não sou a pessoa certa para a liderança. Marlene é muito mais capaz que eu. É firme e fria. Sempre pensa nos outros, e por isso tem o respeito de todos. Deveria ter visto como ela tratou Miguel e Isaque, no navio. Era líder e mãe ao mesmo tempo. Além disso, Marlene é sua sobrinha.
Abner hesitou por um momento, mas seu sorriso não tardou a voltar.
- Receio que possa ter uma tendência excessiva ao remorso, às vezes... – Dizia ele, em tom melancólico. – Tanto dentro da Organização quanto fora dela eu sempre prezei pela segurança de todos. Não da maioria, mas sim de todos. Você entende isso, não é?
- Acho que sim.
James não entendia. Em momentos de risco, muitas vezes a “segurança de todos” não era uma opção, logo, deveria se optar pela “segurança da maioria”. De qualquer maneira, não questionou. Preferia não estender aquele assunto.
- Mesmo assim, conheço as várias qualidades de Marlene mais do que qualquer um, e continuo preferindo você. Queria este serviço antes, James. Está inseguro?
- Eu... não. Não é isso... – Disse James, deixando seu olhar descer aos próprios pés. – De repente me ocorreu que eu posso simplesmente não ser a melhor pessoa. O mais merecedor, ou... eu sei lá.
- James – Chamou-o Abner, se aproximando do outro e pondo uma das mãos em seu ombro. O corpo transmitindo seu calor. – Por que não está sendo verdadeiro comigo? Sabe que pode falar o que quiser para mim, não é?
James suspirou.
- Eu nunca quis ser líder. Eu só queria estar ao seu lado, te ajudando, te apoiando... Quando você falou que me queria para substituí-lo, eu nem achei que fosse sério no início, mas depois eu quis isso... por um tempo. Queria ser como você, forte e admirado. Mas descobri que não tenho vocação ou vontade para este trabalho. Não quero ser responsável pelo futuro de todos.
Abner aproximou seu corpo delicadamente contra o de James. Em um movimento lento seu lábio roçou levemente no do outro, fazendo-o tremer, e então o beijou.
- Não precisa mentir para mim – Disse Abner, ao fim do beijo.
James não conseguiu conter um sorriso que mostrava seus dentes.
- Eu sei. Às vezes eu só esqueço o quanto você é maravilhoso.
Eles permaneceram em um abraço desajeitado – já que a besta de James ficava presa em suas costas, atrapalhando um pouco o gesto – por alguns segundos. A vontade de ficar perto um do outro fazia-os sentir como se houvessem ficado longe há anos, quando na verdade faziam apenas duas noites.
O barulho de grama se mexendo e vozes sussurradas foi quase insignificante, mas não imperceptível para bons ouvidos como os de Abner. O homem, em um dos raros momentos de descanso que tinha, recolheu seu queixo do ombro de James e se afastou alguns passos dele, olhando ao redor como se procurasse algo.
James, que não havia escutado nada, percebeu que a reação do outro indicava que algo estava errado, o que o levou a olhar ao redor também. Pássaros voavam, e talvez alguma cobra rastejasse em algum lugar, mas James não viu nenhuma ameaça por perto.
Abner riu de modo extravagante.
- Deve ser só o vento! – Disse ele aumentando a voz ligeiramente, por algum motivo. Em seguida voltou a falar, dessa vez sussurrando. – É Miguel. Não deve ter aguentado ficar no navio e por isso veio para cá. Isaque deve estar com ele.
- O que?! Quanta irresponsabilidade! – Reclamou James. – Mande-o de volta ao navio!
- Vou mandar alguém levá-lo de volta – Sussurrou ele, em meio a uma nova risada. – Então não fale tão alto, vai fazer ele perceber que notamos ele.
James bufou.
- Você o mima demais.
- E você provavelmente está certo. Ele é praticamente um filho para mim, mas eu não sou um pai muito presente. Acho que tento recompensá-lo da forma errada.
- Você deveria... – Começou a dizer James, até ser interrompido por barulhos distantes de gritos e correria.
Abner e James se afastaram, olhando ao redor com olhos arregalados. James se encontrava assustado, já o líder, dotado de sagacidade, engoliu em seco e tentou demonstrar confiança.
- James, vá atrás de Miguel e Isaque e os leve de volta ao navio. Eu vou verificar o que...
“Pleft!”.
Antes que pudesse terminar sua frase algo passou voando perto do cotovelo de James. Olhou naquela direção e, para sua surpresa, viu uma lança fincada no chão, ao seu lado. Voltou-se na direção de quem havia arremessado tal objeto, no topo do morro onde a cachoeira percorria. Cerca de uma dezena de seres que, mesmo andando em duas patas, assemelhavam-se muito a touros com braços e mãos ao invés de patas dianteiras. Vestiam armaduras de guerra e estavam armados com lanças.
- Tauros... – Murmurou James para si mesmo, com os olhos vidrados de medo.
Aqueles seres dos quais ele tanto ouviu falar sempre que se mencionava “passado” e “guerra” estavam ali logo a sua frente. Logo naquela ilha aparentemente inabitada e segura.
Assustado, tornou a olhar em direção a Abner, que tinha o corpo trêmulo, os olhos repletos de dor e a boca aberta, como se sua alma fugisse lentamente de seu corpo. James já havia visto esse tipo de reação em uma pessoa antes, e ele sabia que só poderia significar uma coisa.
Uma enorme lança atingira o líder nas costas, atravessando bem no meio de seu peito e terminando fincada no solo.
Abner sequer gemeu, apenas fitava James enquanto lutava contra a vontade que sentia de fechar os olhos e cair no chão. O outro estava paralisado. Atônito, não sabia como reagir, até que, em um impulso, foi em direção ao líder quando percebeu que ele desmaiaria sobre aquela lança, o que agravaria ainda mais sua situação.
Passou o braço dele sobre seu ombro e o carregou, da forma que pôde, até atrás de uma árvore perto dali, escondendo-se do campo de visão dos tauros, que já gritavam “atacar!” e faziam novas lanças voltarem a chover no local.
Jogados ao chão, atrás da árvore, James percebeu que outra lança havia acertado Abner de raspão, dessa vez em sua perna. Praguejando, quebrou ao meio a lança fincada no peito do homem, fazendo com que ele finalmente soltasse alguns gemidos de dor. Lágrimas escorreram pelo rosto de James e encontraram a testa de Abner, que o fitava com o os olhos trêmulos que aos poucos, como uma vela que se apaga, ficaram completamente imóveis e sem fogo.
Toda a gritaria e correria que ouviram anteriormente estava ainda maior agora. De forma desordenada, diversas pessoas da Organização corriam em direção a James e passavam direto por ele, se mostrando ainda mais assustados com o fato de ver Abner naquele estado.
Ignorando a todos, James abraçava o corpo de Abner, aos prantos, até uma Marlene trêmula se ajoelhar a sua frente, checar os batimentos cardíacos de seu tio e mirar James, pálida.
Marlene constatou o que James já sabia desde o primeiro instante, e eles nem precisaram trocar quaisquer palavras para se chegar a um entendimento sobre aquilo.
- Temos que ir, James. Agora! – Disse Marlene, com a voz frouxa.
O homem sacudiu a cabeça para os lados e, com a mão trêmula, fechou os olhos de Abner, decidido a ficar o maior tempo possível ao lado de seu amado.
- Vá sem. Não posso deixá-lo.



FIM DA PRIMEIRA PARTE


sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017

Conto: Clamor dos Inocentes (3/3)




No início, uma semana após contratar Billy, eu começava a pensar que ele havia sido um presente dos céus. Um mês depois, eu entendi que não era bem assim. Patrick Hannigan estava desaparecido, e Billy também. Eles simplesmente haviam sumido.
Cheguei a pensar que houvessem matado um ao outro, ou, quem sabe, fugido juntos para alguma outra cidade. Mas a resposta concreta só chegou alguns anos depois.
Primeiro veio a notícia de Patrick, que teve seu corpo encontrado no fundo de um rio. Tinha algumas costelas quebradas, além do maxilar e uma das pernas. A polícia evitou ir atrás dos detalhes, e como ele já não tinha família que se importasse, as coisas ficaram por isso mesmo. Teve um enterro vagabundo onde pouquíssimas pessoas compareceram, e eu era uma delas.
Me sentia culpado, com medo de ter causado a morte de Patrick. Quem poderia imaginar que Billy Jordan iria tão longe por míseros 100 dólares?
Eu, certamente não. Teria oferecido a metade, se isso fizesse alguma diferença.
Entretanto, eu sentia que poderia descobrir a verdade sobre as coisas, cedo ou tarde, mas então, após quase nove meses terem se passado desde o enterro de Patrick, depois de já estar sendo procurado pela polícia em todo estado por diversos assaltos e dois assassinatos, Billy Jordan também morreu.
Aconteceu em Santa Martha, um condomínio de luxo pacato. O corpo de Billy foi encontrado queimado, junto com um carro que o dono havia dado queixa de assalto, há algumas semanas. O fogo havia sido causado por um cigarro, e só não havia acontecido algo mais desastroso e incendiado toda a floresta onde o carro estava – na periferia do condomínio – porque alguns moradores ouviram barulhos de disparos e resolveram investigaram a situação.
Moradores bem intencionados mais um bom tempo e muita água, e então um incêndio pode ser controlado.
A perícia encontrou, dentro do carro quase completamente queimado, alguns quilos de cocaína, uma Colt .45 e, perto dali, em direção ao interior do condomínio, um colar de pérolas arrebentado. Foi concluído que Billy estava sendo assaltado, tentou pegar a arma no banco de trás, e acabou sendo baleado. O cigarro que fumava caiu no próprio corpo e iniciou aquele incêndio.
Mas eu sei que não foi nada disso.
Primeiramente, qual a chance de um ladrão ser assaltado por outro dentro de um dos condomínios mais seguros do estado? Qual a chance de um cara matar o outro e não levar sua arma e seu carro, sendo que a chave estava na ignição?
Não foi isso. Definitivamente, não foi.
Acho que Billy havia seduzido alguma das madames ricaças do Santa Martha, levou-a até seu carro roubado, e então foram trepar em algum lugar, como sempre fazia desde os tempos de colégio. Até que algo deu errado.
Talvez um amigo próximo de Patrick – se ele tivesse algum que se importasse –, ou outra pessoa que Billy possa ter prejudicado, tenha o encontrado e feito justiça com as próprias mãos. Talvez fosse algum traficante ou o marido da madame que ele comia.
A única coisa que sei é que não existe chance nenhuma de Billy Jordan ter sido assassinado por algum motivo casual ou não intencional. Billy é o tipo de cara que, antes mesmo de você terminar de sacar sua arma, ele já te deu ao menos dois motivos para puxar o gatilho.
Olhando para trás, hoje, é quase engraçado relembrar todas essas coisas.
No início, todos chamávamos Bob Miller de covarde, mas a verdade era que ele sempre suportava uma surra cada vez pior sem nunca desistir de revidar, o que, no seu caso, significava fazer denúncias.
Eu era o oposto disso. Eu era o verdadeiro covarde. Nunca consegui falar para ninguém, além dos meus colegas - que já sabiam que aquilo acontecia -, que apanhava praticamente todos os dias. Eu suportava calado, tendo medo de me defender ou pedir por ajuda. Eu escolhi o caminho mais fácil, paguei um cara que cuidou dos meus problemas por mim.
Se eu tivesse tido metade da coragem de Bob, talvez Patrick pudesse estar vivo hoje. Pois é, esta talvez seja a parte mais curiosa de todas, mas eu nunca quis que Patrick morresse, mesmo naquela época. Eu só não queria continuar apanhando.
Assim que Patrick foi dado como desaparecido, Will até ficou feliz. Disse que era um desafeto a menos na nossa lista. Mesmo hoje ele ainda diz, às vezes, que contratar Billy foi a melhor coisa que fizemos.
Eu não penso dessa forma. Não espero que ninguém entenda, mas não há um dia em que eu não sinta meu travesseiro mais pesado, antes de dormir, imaginando o que pode ou não ter acontecido; ou o que eu posso, ou não, ter provocado.
            Hoje em dia, quase 20 depois do início dessa história, os cigarros que passei a fumar depois do sumiço de Patrick transformaram meus pulmões em frágeis sacolas plásticas cheias de ar, mas durante as noites mais difíceis, eles são a única coisa que conseguem me fazer dormir.


                                           FIM DA ÚLTIMA PARTE


quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

Conto: Clamor dos Inocentes (2/3)

        
“Comum”. Lembro que essa foi a primeira palavra que veio a minha cabeça quando vi Billy pela primeira vez. O portão de minha garagem se abria lentamente, e começava a revelar os primeiros traços daquele que poderia ser o meu salvador. Tênis baratos e desgastados, calça rasgada em ao menos dois locais diferentes, e jaqueta escura de couro, fechada. As mãos no bolso da jaqueta e a expressão completamente indiferente estampada na face, espalhando a fumaça do cigarro de sua boca.
- Vo-você é o Billy? – perguntei, a princípio um pouco nervoso. É claro que o cara poderia não ser do tamanho de Hulk Hogan, mesmo assim, eu continuava sendo um magrelo fracote e medroso. Além disso, Bruce Lee também não era grande, e todos sabemos das coisas que ele foi capaz de fazer.
Ele não respondeu. Continuou me encarando com um olhar amargo por mais algum tempo, sem desviar o olhar. Sua pele era branca, pálida, e os cabelos curtos, estilo militar. Somente mais tarde, naquele dia, que eu percebi o quanto ele se parecia com um psicopata, me olhando daquela forma.
- É, acho que se não fosse ele, não estaria aqui. Não é? – dizia eu, dando uma risada forçada, nervoso.
Billy continuou me olhando da mesma forma, ainda sem dizer nada, o que me deixou mais nervoso. Cheguei a pensar que diria alguma coisa quando mexeu seu braço direito, mas apenas puxou o cigarro dos lábios secos e tragou profundamente.
Outra coisa sobre Billy Jordan era que ele estava sempre fumando quando estava fora da escola. Os boatos já diziam isso, então não era exatamente novidade para mim, nem mesmo algo tão ruim quanto os comerciais de TV faziam parecer. As pessoas gostavam, achavam legal. Seria algo que até mesmo eu poderia gostar, aos meus 16 anos, se aquilo não fosse tão desnecessário e indiferente para mim, naquela época.
Depois de algum tempo Billy desviou o olhar de mim, e começou a olhar as coisas de minha garagem, ao meu redor. Entrou em passos lentos, observador.
- Ãn... pode entrar, fique à vontade – eu disse a ele, conforme ele já entrava em minha casa.
Passou os olhos pelas prateleiras repletas de velharias, materiais de construção e de pintura. Naquela época meu pai havia recebido uma promoção no trabalho e, na empolgação do momento, comprou vários daqueles materiais, prometendo fazer de nossa velha casa uma mansão. O tempo passou e, que eu me lembre, ele mexeu somente uma ou duas vezes nos materiais de construção para consertar um vazamento ou fincar um prego na parede para colocar um quadro.
- Humph. Que lixaria... – resmungou Billy pela primeira vez, entediado. Tinha parte da voz obstruída pelo cigarro em sua boca, e olhava com nojo para a garagem, se apoiando contra uma das portas do recém-comprado Mazda 626 1996 do meu pai.
Tragou profundamente com seu cigarro e voltou a me encarar com o mesmo olhar de antes. Talvez até um pouco mais zangado. Dei um sorriso torto, e pensei na possibilidade de lhe oferecer um café, mas percebi que não seria uma boa ideia antes de fazê-lo.
Decidi ir direto ao assunto.
- Certo... eu te chamei aqui porque... – comecei a dizer até ele me interromper, com a voz firme.
- Quer que eu bata em quem?
- O-o que? – perguntei, nervoso.
Naquele momento eu imaginava como Billy poderia saber que eu havia o chamado ali com aquele intuito. Eu havia encontrado seu número com um amigo da minha irmã, que estudou com ele. Na conversa por telefone ele parecia igualmente calado, ainda que na ocasião eu houvesse pensado que ele estava apenas ocupado com alguma outra coisa. Apenas disse a ele que tinha uma proposta para lhe fazer e lhe dei uma estimativa de quanto poderia pagar. Ele não perguntou nada, apenas disse que viria.
- As pessoas me ligam querendo que eu bata em alguém, então elas dizem um nome, me pagam, e eu faço o serviço. Então? O que tenho que fazer? – dizia ele, em tom mais ríspido do que suas palavras faziam parecer.
Na época eu achei curioso que Billy houvesse encontrado minha casa tão rápido. Ela não tinha numeração na frente e havia outras duas ruas com o mesmo nome. A grande maioria das pessoas não encontrava minha casa na primeira vez, mas Billy encontrou. Somente anos mais tarde eu descobri que minha irmã mais velha havia sido uma das garotas do colégio com quem ele trepou, no secundário. Antes disso, eu não fazia ideia.
Quero dizer, é claro que eu sabia que minha irmã, cedo ou tarde, treparia com alguém – assim como eu mesmo também pretendia –, o problema é que nós nunca esperamos que esse alguém seja um babaca como Billy Jordan ou Patrick Hannigan.
Na verdade, acho que não esperamos nem que elas façam isso com caras como Will, Bob Miller ou eu.
– Ãn... Certo – eu dizia, tentando retomar minha postura. – Tem um cara que anda incomodando a mim e um amigo há algum...
– Que merda você não entendeu? – me interrompeu ele, impaciente, arrancando da boca o filtro que havia sobrado do cigarro, e jogando para fora da garagem. – Eu só quero a porra do nome e o dinheiro!
Eu hesitei por um momento, observando a atitude agressiva e a expressão sanguinária de Billy, mas, de alguma forma, me enchi de coragem e disse com a convicção de quem grita um hino de guerra o nome que já estava entalado na minha garganta há quase um ano.
– Patrick Hannigan. 100 dólares agora, e mais 100 depois, caso ele vá parar no hospital – dizia eu, puxando com violência o dinheiro de meu bolso.
Will e eu lutamos para conseguir juntar aquela quantidade durante um mês, pois sabíamos – através dos boatos – que Billy não faria aquilo por menos. Tivemos que cortar grama, limpar as calhas e até lavar os carros dos nossos vizinhos durante um bom tempo, até finalmente conseguirmos.
Eu me sentia inquieto por dentro, assustado; mas por fora eu segura 100 dólares com firmeza na mão, e lançava um olhar afiado a Billy, como se o desafiasse a aceitar aquela missão. Ele finalmente mudou a expressão, e deu um sorrisinho cínico na ponta dos lábios. Andou em minha direção a passos firmes – enquanto eu mantinha minha postura –, pegou o dinheiro de minha mão com rapidez e se encaminhou para fora da minha garagem.
Enquanto ele saía, confesso que a imagem que me vem à cabeça agora, ao relembrar tudo isso, é a fala de minha irmã sobre ele. Não era bom de cama, e nem bonito. Dizia ela, indiferente. A questão com ele era o prazer de saber que você estava fazendo algo que não devia, com alguém que não devia.
De certo modo, tirando a parte sexual da coisa, era daquela forma que eu me sentia ao ver Billy se afastar de minha casa. Mas essa sensação não tinha nada de prazerosa. Eu era um frágil ratinho assustado que tinha relapsos de coragem, e, por vezes, decidia ir atrás de ratos maiores e mais fortes arquitetar um plano contra um cientista malvado que brincava de Deus.
Eu, talvez, fosse o ratinho assustado, mas Billy não era outra rato – mesmo que um grande – e muito menos Patrick Hannigan era um cientista malvado.
- Guarde bem meus outros 100 dólares – dizia ele, olhando por cima dos ombros com o mesmo sorrisinho cínico de antes, e puxando outro cigarro do próprio bolso enquanto o portão da minha garagem se fechava atrás dele.
              Eu guardei bem aqueles 100 dólares, mas Billy Jordan nunca voltou para buscá-los.


                                        FIM DA SEGUNDA PARTE