Cansada de tanta correria,
Marlene sabia que ainda não podia ceder. Por mais que todo medo e tensão
pairassem no ar, não havia precisado pedir duas vezes para que sua tripulação voltasse
e ajudasse os companheiros em perigo. Ainda mais quando um desses companheiros
era o principal candidato a liderança do grupo, depois da tragédia que
acontecera a Abner.
Enquanto a maioria se
organizara para ir atrás dos que ficaram para trás, outro grupo menor pegou um
dos botes e foi até o navio levando Miguel com eles, onde deixariam tudo
preparado para partirem com os outros assim que fosse possível.
Com praticamente o mesmo
número de guerreiros que os tauros, o grupo chegou a clareira a tempo de ver
tudo acontecer. Exaustos, James e Bryan lutavam ferozmente contra Zack.
Golpes iam e vinham de um lado para o outro. Em algum momento, quando levou uma
cotovelada que o fez rolar pelo chão, James se posicionou de joelhos e agarrou
sua besta. Além da flecha que já engatava nela, lhe restava apenas mais uma em
sua aljava. Enquanto isso, Bryan percebeu o que o irmão pretendia e, quando o
momento surgiu, tentou dar um salto e se afastar do ser, no intuito de fazer
James ter uma visão mais limpa do alvo, mas como se previsse seus movimentos
Zack deu um passo a frente e o agarrou com uma das mãos, erguendo-o no ar
enquanto a outra mão tinha uma espada apontada para o pescoço do rapaz. A
pressão aplicada no pescoço de Bryan o fez largar sua espada.
- Jogue sua besta fora! –
Ordenou o tauro, em sua voz gutural.
- Não... não faça isso... –
Conseguiu granir Bryan, praticamente sem voz. Ele se agarrava a mão do tauro,
tentando tomar folego, e chutava-o, mas nenhum de seus golpes parecia fazer
efeito.
- PAREM TODOS! – Gritou
Zack, ao ver que os reforços de Marlene a essa altura já estavam a
pouquíssimos metros dele.
Receando que algo acontecesse
a Bryan eles obedeceram, inclusive Miguel, hesitante, jogou sua besta aos pés
de Zack, que chutou-a para longe. Não sabia se aquela era a melhor escolha,
mas imaginou que não seria uma boa ideia enfurecer alguém que tinha uma espada
apontada para o pescoço de seu irmão.
- Estão vendo?! Essa é a ordem
natural das coisas, humanos obedecendo a nós! A força fazendo o poder! –
Gritava Zack, desfilando na frente de seus homens ainda com Bryan em mãos.
Os tauros urraram conforme seu
líder falava.
- DEIXE-O, ZACK! – Gritou James.
Seu peito parecia que iria explodir. – OU EU O MATO AGORA MESMO!
A ameaça fez os tauros rirem.
- Estão vendo?! Veem como eles
parecem ter se esquecido da nossa superioridade?! Veem como eles acham que
podem nos dar ordens! – Conforme falava, os tauros passaram a urrar cada vez
mais. – E sabe o que fazemos com gente assim?! Nem sequer sujamos nossas
lâminas, NÓS APENAS OS ESMAGAMOS!
“Crack!”.
Um grito áspero surgiu de Bryan,
e então sua voz se tornou esganiçada e seus chutes perderam a força até cessarem
completamente. Miguel só conseguiu perceber que aquele era realmente o fim
quando viu a cabeça de Bryan pender para o lado, imóvel, e antes do corpo ser
largado ao chão os gritos de James já poderiam ser ouvidos até do outro lado do
oceano.
Em choque, Marlene e os
humanos apenas olhavam James em seu momento de fúria. Ao contrário do que
acontecera quando presenciara o assassinato de Abner, ao invés de paralisar o
homem buscando colocar toda sua energia para fora de seu corpo, tremendo,
chorando, gritando e socando a grama.
Em algum momento aquela
energia precisou ser canalizada para algum lugar. Ter um foco real, e foi
quando Marlene passou a temer pela vida e até a própria sanidade do homem em um
dia tão cruel como aquele. James se levantou e, mesmo sem sua besta, agarrou
sua última flecha da aljava enquanto corria e pegava a espada caída de Bryan
com a outra mão.
Seus movimentos se tornaram
tão rápidos e potentes como se seu corpo houvesse sido possuído pela ira de mil
guerreiros ensandecidos, e então, com exceção de Zack, que ainda tinha um
sorriso malicioso estampado em sua cara de touro, os outros tauros já não riram
mais, e ainda observavam a tudo com olhos arregalados.
Ainda assim, Zack era ainda
mais forte do que poderiam imaginar. Enquanto se esquivava e defendia com a
espada, também precisou usar a braçadeira de seu outro braço como uma espécie
de escudo para conseguir dar conta dos golpes de James, que avançava sobre ele
tanto com aquela flecha como com a espada. Mesmo sem atingir Zack, Marlene
percebeu que o tauro agora suava, e seu sorriso malicioso desparecia de seu
rosto animalesco.
Aparentemente os outros tauros
também perceberam isso, e foi quando dois deles avançaram sobre James, que,
como se lutasse contra crianças, percebeu a chegada dos dois e enfiou aquela
flecha no pescoço de um deles enquanto se agachava para desviar do ataque do
segundo, e ainda enfiava sua espada no abdômen do ser. Em seguida finalizou com
um ataque em seu pescoço.
Seus inimigos mal conseguiam
vê-lo, e quando seus olhos cheios de raiva se voltaram novamente sobre Zack,
o encarando com certo temor, foi quando a confusão se iniciou. Tanto os humanos
quanto os tauros decidiram que era a hora de intervir na batalha.
No meio da confusão de sangue
e tinir de espadas, James recebeu uma pancada na lateral da cabeça antes que
conseguisse chegar até Zack, que àquela altura já se misturava entre os seus
para se afastar do local de guerra.
O golpe fizera James bambolear
e sua visão se tornar turva, e toda aquela fúria que surgira nele a
pouquíssimos segundos atrás parecia ter desaparecido junto com seu equilibro.
Fazendo um esforço para conseguir se manter em pé e encarar o tauro que o
atacara, tentou desferir um golpe no mesmo com sua espada, mas sua força já não
era mais a mesma, e o golpe foi facilmente repelido, como se além de tudo James
também houvesse se lembrado que batalhas com espada não eram sua especialidade.
Mas nem precisavam ser, pois
um dos seus chamado Lobianco conseguiu chegar até ele e ajudá-lo. Com isso
James conseguiu se resguardar e dar mais alguns passos para trás no intuito de encontrar
uma melhor visão. Mesmo que ainda enxergasse um pouco embaçado, observou que
atrás daquela cena de guerra Zack caminhava lentamente até o fim da clareira,
perto da cachoeira. Em seus ombros estava Isaque, desacordado, e o tauro se
virava para encarar James.
Seus olhos vermelhos
transmitiram um pouco de medo e desprezo, mas acima de tudo diziam que a raiva
não lhe abandonaria tão cedo.
Como se tentasse enganar a si
próprio, Zack forçou um sorriso malicioso e fez um sinal com uma das mãos,
indicando que James fosse até ele. Naquele momento foi como se, mesmo que muito
longe da mesma intensidade de antes, aquela sensação de ira voltasse a tomar o
corpo de James, e quando ele deu alguns passos contornando o cenário de luta e correndo
em direção a Zack, que com Isaque em seu ombro já se metia floresta a dentro,
o homem então sentiu um estalo em sua nuca, e sua visão se tornou escura e ele
caiu no chão.
Atrás de James, Marlene fazia
um sinal para que Lobianco viesse até ela e ajudasse a carregar James.
- Tive que fazer isso, não
podemos correr o risco de perdê-lo.
Lobianco assentiu.
- Não posso ajudá-la, meus
companheiros precisam de mim! – Disse ele, apontando para o cenário da batalha
logo atrás dele.
- Não! Temos que ir embora
imediatamente! Você me ajuda enquanto batemos em retirada.
Receoso, Lobianco assentiu, e
então eles passaram a carregar James floresta a dentro, em direção ao navio,
enquanto Marlene gritava ordens para que seus amigos se retirassem.
O tinir de espada e os gritos
o seguiram por todo o caminho.
*
Enquanto embarcavam no bote
com James, ainda desmaiado, Marlene e Lobianco puderam ver como a maioria de
seus companheiros não conseguiu chegar até eles ou aos outros botes a tempo.
Enquanto tentavam lutar e correr em retirada, muitos acabaram morrendo. Seja no
caminho de volta até a praia, ou mesmo enquanto embarcavam nos botes.
No fim das contas somente
outros dois botes com um punhado de pessoas conseguiu voltar de lá. Marlene
olhava aquilo tudo com lágrimas nos olhos enquanto na praia os tauros riam e
urravam em comemoração, fazendo brincadeiras nojentas com os corpos dos seres
humanos assassinados.
Era tanto o terror que a
mulher teve que desviar os olhos. Sabia que era um erro ter levado um grupo de
volta para tentar resgatar James e os outros, e pior ainda seria se deixasse
James ir atrás de Zack ou tentassem resgatar Isaque. Ainda assim, não se
perdoaria se desonrasse a memória de seu tio Abner e deixasse seu amado James
morrer.
Abner, o homem que fora
praticamente um pai para ela e, de certo modo para todo seu grupo também, agora
estava morto. Simplesmente morto, e a única coisa que poderiam fazer para
mantê-lo vivo era honrar sua memória e cumprir suas vontades, porém, depois da
cena que vira, tinha certeza de que a vontade de Abner não poderia ser
cumprida.
Depois de tudo que acontecera a
James, ela sabia que ele dificilmente se recuperaria de todo aquele choque.
James foi contaminado pelo ódio, e a agora já não mais poderia ser o líder que
aquele grupo precisava. Além disso, ela sabia também que a liderança
provavelmente não seria uma vontade do homem, isto é, caso realmente tenha sido
sua vontade um dia.
Enquanto seu bote se
aproximava do navio tudo que Marlene pensava era com que cara olharia para
todos os outros sabendo que tantas mortes aconteceram e que muitas delas foram
sua culpa. Como seria a vida quando voltassem para casa? Abner era o pilar de
todos, e agora ela sentia como se tudo estivesse desmoronando junto com ele.
Abner, Bryan, Isaque e tantos
outros. Tantos inocentes que permaneceriam para sempre em suas memórias.
Quando subiram até o navio,
quase não conseguiu suportar todo aquele sentimento de tristeza e perda que preencheu
o lugar. Ainda assim, todos aqueles olhos cheios de lágrima pousaram sobre ela
e demonstraram confiança. Demonstraram uma vontade de viver e se reerguer. Algo
embutido dentro deles que não podia ser contido ou mascarado e que se voltava para
ela naquele instante.
E foi quando ela soube.
Agora todas as suas esperanças
estavam sendo depositadas sobre ela, e depois de tudo, de todas as mortes que
provocara e do modo como nem sequer conseguiria honrar a memória de seu tio,
Marlene entendeu que estava em dívida com todas aquelas pessoas, e já não
poderia mais decepcioná-las.
Querendo ou não, agora era seu
momento de ser o pilar. Era o seu momento de ser o farol e guiar todos aqueles
corpos vazios, despidos de orientação, de volta para casa.
Seu olhar decaiu sobre James e
Miguel, deitados ao chão lado a lado, e seu coração se tornou ainda mais
pesado, sentindo que também havia falhado com eles e com Isaque, as três
maiores paixões de Abner. Sabia que quando acordassem os dois talvez se
zangassem com ela, talvez até a odiassem para sempre, mas também sabia que se
sentiria muito pior se eles não estivessem ali, assim como Isaque não estava.
Ergueu seu olhar sobre os
outros, e entendeu que era o momento de guardar suas lagrimas e qualquer
discurso motivacional fajuto. Hoje eles haviam perdido e nada mudaria isso, mas
amanhã seria um novo dia, e ela não deixaria que aquele fosse o fim de sua
história.
Aliás, não deixaria que aquele
fosse o fim de mais ninguém.
- Içar velas! – Gritou ela,
firmando os ombros e a voz. – Temos um longo caminho de volta para casa.
Aquele era o seu mundo, e nele
mais nenhum tauro teria vez. Nem que precisasse caçá-los um a um.